Mariza Seita, tatuadora de profissão e fundadora do estúdio de tatuagens Ink&Wheels sedeado em Lisboa, destaca-se por ter-se dedicado à reconstrução do mamilo em mulheres afetadas pelo cancro da mama, serviço este que dispõe gratuitamente.
Fala-nos um pouco sobre ti e como é que as tatuagens surgem na tua vida?
Comecei a ter interesse nas tatuagens — mais nas tatuagens do que em ser tatuadora — desde muito nova, porque sempre me dei com malta mais velha e alternativa na zona de Almada. Depois também fui estudar para a Faculdade de Belas Artes frequentada por muita gente alternativa e acabei por, inevitavelmente, olhar para as tatuagens como uma coisa que realmente fazia sentido; toda a história por detrás de cada tatuagem era arte e era arte que ficava connosco para sempre. Se não fossem os meus pais, com 14 anos já tinha feito a minha primeira tatuagem.; mal fiz 18 anos, foi a primeira coisa que fui fazer. Nessa mesma altura, comecei a aprender a tatuar. Foi uma experiência que comecei a ter paralelamente ao curso de Escultura que estava a tirar.
Consideramos que o teu trabalho de reconstrução do mamilo é uma causa verdadeiramente nobre e que vai ao encontro dos valores e daquilo em que DFS acredita e luta todos os dias — a valorização e capitalização da auto-estima da mulher no seu todo. Porque é que decidiste dedicar-te a esta causa e como é que coordenas este serviço com o teu dia-a-dia profissional, uma vez que o prestas de forma gratuita?
Isto tudo começou porque sou uma pessoa muito curiosa e também porque gosto muito de pessoas, acima de tudo. Há vários tipos de tatuadores: o tatuador que tatua porque é o trabalho dele, há o tatuador que tatua para ganhar dinheiro e depois há o tatuador que adora o que faz; e eu para além de adorar aquilo que faço e me encaixar neste último grupo, também gosto muito de pessoas, gosto de falar com as pessoas, gosto de conhecê-las e de saber a história delas – quando uma pessoa vai lá ao estúdio tatuar, acaba por criar um laço connosco porque se sente super confortável e “quase em casa” e isto foi uma das coisas mais importantes quando eu quis abrir a minha loja em 2015, quebrar aquele estereótipo de que um estúdio de tatuagens é um sítio pesado, preto e agressivo e fiz o meu estúdio muito à minha imagem, ligado aos anos 50 e 60, e isso convida muito mais as pessoas.
Quando andava à procura de inspiração para a minha loja, deparei-me com um tatuador na Austrália que fazia esta reconstrução de mamilo e o que me chocou foi eu nunca ter pensado naquilo e no quão fácil para um tatuador é fazer este tipo de trabalho. Consegui a minha primeira cobaia através de uma amiga. A verdade é que quando acabei o meu primeiro trabalho de reconstrução do mamilo, vi, assim de repente, essa pessoa a mudar completamente de atitude e a sentir-se bem com ela própria. Chorámos as duas e meti na minha cabeça, a partir desse dia, que ia disponibilizar este serviço na minha loja gratuitamente. Tem é de ser bem organizado… por exemplo, eu neste momento, estou a fazer uma reconstrução por mês.
Como é que as mulheres vêm até ti ou sabem do teu trabalho? É muito à base do boca- à-boca ou existe alguma plataforma que expõe os teus serviços?
O Fundo IMM-LAÇO tem a Ink&Wheels na sua rede de parceiros. Seja como for, é muito através do boca-à-boca mas reparei que comecei a ter muito mais pessoas quando fui falar à televisão.
Explica-nos o procedimento normal. Há uma avaliação inicial? Quantas sessões em média? E qual é o primeiro impacto das mulheres que decidem efetivamente trabalhar contigo?
É rapidíssimo, é maravilhoso e ficam todas contentes em 20 minutos! Normalmente mandam-me mensagem para marcar mas quando é um caso em que eu preciso mesmo de ver pessoalmente, agendamos uma avaliação inicial e fazemos uma marcação para tatuar depois. Na maior parte dos casos, basta só enviarem-me uma fotografia e fazemos logo a marcação. As pessoas ficam, normalmente, muito surpreendidas pelo facto de ser tão pouco tempo. E depois, há outra coisa muito gira — estas mulheres vêm normalmente com medo da dor que podem sentir mas como a pele, nestes casos, não tem sensibilidade, elas acabam por estar ali como se nada fosse. É maravilhoso!
E notas que há alguma relutância por parte destas mulheres em efectivar uma marcação por algum motivo?
Não não, quando vêm falar comigo vêm cheias de vontade, super decididas a fazer.
Imagino que o teu trabalho tenha um valor inestimável na vida destas mulheres. Há alguma em especial que tenha marcado por alguma razão?
Estas pessoas são todas muito especiais. Há pessoas que estão mais preparadas para o que vão sentir e controlam-se; há outras que são apanhadas totalmente de surpresa quando se olham ao espelho e eu com essas fico mais sensibilizada porque elas acabam por exteriorizar mais.
Tive uma senhora com cerca de 50 anos que sempre fez topless na vida, por exemplo, e desde que teve cancro nunca mais o fez… a primeira coisa que ela disse quando foi ao espelho foi “Eu não acredito que vou fazer topless outra vez!” Isto foi super engraçado!
Outra foi a Sara que fez a reconstrução e depois marcou comigo para fazer a tatuagem e contou- me que as pessoas não conseguem diferenciar o mamilo que está tatuado do outro.
Depois de fazerem a reconstrução do mamilo, notas algum interesse por parte destas em fazer outras tatuagens?
Nem por isso. As mais novas sim mas as mais velhas normalmente não fazem mais nenhuma, vão mesmo só com o objetivo de reconstruir o mamilo e muitas delas nem gostam de tatuagens. Duas delas já me disseram “Nunca na vida pensei fazer uma tatuagem!”.
Achas que depois de estas mulheres verem o trabalho que fazes e estarem no teu estúdio, acabam por perder o tabu das tatuagens?
Não sei se perdem, possivelmente sim. Mas acho também que as pessoas que dão o braço a torcer para fazer a reconstrução do mamilo não são as pessoas que são totalmente contra as tatuagens. Acho que as pessoas que vão para tatuar o mamilo, já conhecem mais ou menos este mundo porque um filho tem uma ou porque conhecem alguém que tem e então acaba por não existir esse tabu. Nunca senti isso… a pessoa mais velha que eu tatuei o mamilo tinha 80 anos!
Se pudesses deixar uma palavra de carinho às mulheres em situações idênticas ou muito similares àquelas que tatuas e até mesmo a outras que estejam a passar por situações de fragilidade emocional, física ou financeira, o que dirias?
Quando me dediquei a este serviço não foi por ter alguém numa situação destas, foi uma coisa que eu senti que tinha de fazer, que veio do meu íntimo. E eu acho que isto é uma coisa que estas mulheres também irão sentir com o tempo… mesmo que não estejam preparadas, com o tempo elas vão ter essa disponibilidade emocional e vão sentir-se prontas para pôr um ponto final nesta luta e recomeçar. E a reconstrução do mamilo é muito, ou um recomeço ou um ponto final para um recomeço. Muitas delas dizem isto, que é fechar um ciclo para começar um novo. Temos de ter capacidade e inteligência emocional para o conseguir. Pode demorar mais numas pessoas e menos noutras, mas isso tem muito a ver com a personalidade e e com o estado psicológico de cada uma… mas acaba por ser uma coisa natural, que vem sem ser premeditado.
Às mulheres que já tatuaram ou que têm interesse em tatuar, o que me deixa imensamente feliz é o facto de elas confiarem em mim e no meu trabalho porque isto acaba por ser uma grande responsabilidade; uma responsabilidade que muitas pessoas não têm noção que existe, nas tatuagens no geral, e em especial nestas que mexem muito com a auto-estima das mulheres. Tenho a perfeita noção que as pessoas ao deixarem-me fazer este tipo de trabalho, estão a depositar uma confiança enorme em mim e só tenho de lhes agradecer por isso.
Há algum novo projeto ou um next step que tu queiras dar nesta vertente da reconstrução do mamilo?
Gostava muito de organizar uma Master Class para tatuadores. Gostava muito de não ser a única pessoa a fazê-lo gratuitamente…
Entrevista realizada por Ana Gonçalves em Dezembro de 2020