Prometia ser um bom ano, 2020. O início de uma nova década, marcada por um acontecimento decisivo para a Europa: a concretização do Brexit. Já então eu achava que não iria nunca esquecer este ano e, um dia mais tarde, à lareira, este seria um evento histórico para contar aos netos. Mal sabia eu o que estava para vir.
Por esse mundo fora, uns seres microscópicos e mortíferos, obrigaram-nos a um encerramento forçado em nossas casas. Tudo parou! Fronteiras encerradas, comércio fechado, cidades desertas. Nunca tal se viu e, penso eu, a nossa geração certamente não voltará a ver.
Após várias semanas em que parecia que o mundo tinha adormecido, tudo começou a regressar à normalidade. Ansiosa, com a abertura do comércio, fiz uma tentativa de ir tomar café fora. Confesso que não gostei da experiência, porque andar de máscara e respeitar outras indicações sanitárias não é muito prático. No entanto, aceito de bom grado, se isso servir para nos protegermos uns aos outros de problemas mais graves. A mudança requer sempre um tempo de adaptação para se enraizar. Deve ainda demorar algum tempo para que o café se volte a tornar um espaço de animado convívio.
Já no caminho de regresso, que resolvi alongar para aproveitar o sol da tarde, pensei no que diria George Steiner, o crítico literário francês falecido este ano, se ainda estivesse entre nós. Ele defendia que a cultura europeia se faz nos cafés, um pouco por todo o lado, de Lisboa a Londres e de Paris a Cracóvia. Diz ele que «o café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos, para o flâneur e o poeta metafísico debruçado sobre o bloco de apontamentos»[1]. Constatei como tudo é tão efémero, como uns seres microscópicos conseguem tomar conta da nossa vida e colocar as nossas rotinas de pernas para o ar.
Penso agora em Pessoa e em tantos outros intelectuais e artistas do início do século XX, que puderam fazer a nossa História em locais como a Brasileira e o Martinho da Arcada. Que seria deles e dessa geração se não existissem estes espaços para convívio e troca de ideias?
O fascinante disto tudo é que o ser humano tem uma capacidade incrível de se reinventar. Somos capazes de cair no abismo, de quase ser destruídos. Ficámos sem futebol, sem cabeleireiros, sem viagens, nem centros comerciais. No entanto, tal como a Fénix, estamos prontos a renascer das cinzas, a reerguermo-nos talvez ainda melhor do que antes.
Os tempos vão ser difíceis? Para já imagino que sim. E provavelmente nada voltará a ser como antes, pois como dizia o poeta «todo o mundo é composto de mudança/tomando sempre novas qualidades». Mas o ser humano é um inventor capaz das mais extravagantes conquistas e o mundo que vai nascer, certamente trará oportunidades que ainda nem sonhamos. Não é para ter medo. Pelo contrário, é para estarmos expectantes e abraçar este novo início!
Filomena Gonçalves
Blogger e a aproveitar a vida ao máximo
[1] STEINER, George (2005), A Ideia de Europa, Lisboa, Gradiva.